domingo, 19 de fevereiro de 2017

Fé e Ciência

* Analisando as bases do cristianismo é fácil perceber que ele é uma religião diferente das outras pois, além da fé, é baseado na racionalidade.

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Em um pronunciamento na catedral da cidade alemã de Colônia, em 15 de novembro de 1980, o papa João Paulo II constatou que a relação entre a Ciência e a Igreja era muito mais harmoniosa na prática do que na parecia na teoria. Na ocasião o papa se dirigia a estudantes e professores universitários pela recordação dos 700 anos de falecimento de Santo Alberto Magno. O santo alemão é doutor da Igreja e padroeiro dos cientistas. Foi frade dominicano e seu intelecto abrangeu todas as áreas de conhecimento da época, desde a teologia, a filosofia, até as ciências naturais. Apesar de não ter havido muitos outros como ele na abrangência de conhecimentos investigados, há inúmeros outros que dedicaram suas vidas à fé e à ciência. Foi em relação a estas pessoas que se referiu o papa.
De fato, analisando as bases do cristianismo é fácil perceber que ele é uma religião diferente das outras pois, além da fé, é baseado na racionalidade. Deus se manifesta e é o Logos encarnado que se comunica com o homem. Percebendo que o universo pode ser compreendido intelectualmente, ou seja, é inteligível, o homem se lança neste empreendimento magnífico chamado ciência. Não só as ciências naturais, mas todas elas, as humanas, as filosóficas e, por que não, a teologia. Ou seja, o cristianismo dá bases para que o homem possa ter a pretensão de compreender não só o mundo, mas o próprio Deus. Claro que nossa capacidade é limitada, mas a vontade parece que não. Se o cristianismo pode ser identificado como uma religião racional, a relação entre a Igreja e a Ciência deve ser harmoniosa. Evidentemente que houveram alguns momentos de atrito, mas foram mínimos e via de regra hoje muito mal compreendidos. Na sua última coluna o Marcio clarificou alguns mitos sobre Galileu.
Ao longo da história sacerdotes, religiosos e religiosas sempre foram pessoas muito instruídas.
Grande parte desta erudição se deve aos estudos teológicos que faziam parte da formação e da vida destas pessoas. Evidentemente que pessoas instruídas tendem a ter os horizontes intelectuais abertos para outras áreas. Creio que esta seja a grande razão de terem surgido grandes cientistas entre muitas pessoas da Igreja. Copérnico, que propôs que a Terra girava em torno do Sol, era cônego. O descobridor do primeiro asteroide, Ceres, foi o padre Giuseppe Piazzi. Mendel descobriu as leis da genética no seu mosteiro na República Checa. E para citar só os mais famosos ainda é preciso lembrar do padre Lemaître que propôs a teoria do Big Bang e de Nicolau Steno, que foi bispo e é considerado o pai da Geologia moderna. Essa lista nada modesta só inclui sacerdotes cujos trabalhos científicos causaram grande impacto. Há muitos outros ainda que não foram citados. Uma lista como esta não quer dizer que a Igreja é um celeiro de vocações científicas, mas sim que na prática as relações entre a Igreja e a Ciência são muito frutíferas. Como afirmou o papa João Paulo II há 30 anos em Colônia.
Outro aspecto prático destas boas relações entre a Igreja e a Ciência são famosas Universidades criadas e/ou mantidas pela Igreja, onde a ciência é livre para ser desenvolvida. Além das Universidades, a Igreja ainda mantém institutos de pesquisa, como o Observatório Astronômico do Vaticano, do qual falei um pouco no último artigo. A Specola Vaticana, como é conhecido o Observatório, é mantido pela Santa Sé e por doações e gerenciado por padres jesuítas que também são astrônomos. Além do Observatório Astronômico a Santa Sé mantém uma das mais antigas academias de ciência do mundo. A Pontifícia Academia de Ciências é constituída por cientistas de renome mundial, muitos deles ganhadores do prêmio Nobel. Juntos eles discutem temas importantes referentes às grandes questões científicas mundiais, especialmente as que dizem respeito ao ser humano e ao futuro do planeta. Grande parte do trabalho desenvolvido pela Academia pode ser encontrado no site do vaticano e lido gratuitamente.
Mas muito embora a Igreja valorize a Ciência como um grande e importante empreendimento humano, ela não cansa de alertar para os perigos que a Ciência pode trazer se usada da maneira errada. Os riscos são vários, mas três se destacam e mereceram muita atenção nos discursos papais mais recentes, inclusive na última encíclica do papa Bento XVI, Caritas in Veritate. Em primeiro lugar está o risco do conhecimento científico ser usado por grupos de poder para dominar os outros. Já vimos isso com as bombas atômicas ou então com o monopólio de conhecimentos, como algumas patentes de remédios. Com o desenvolvimento tecnológico cada vez mais acelerado o risco do conhecimento ser usado efetivamente como arma é muito grande. É preciso que fiquemos todos muito alertas e que não aceitemos este tipo de uso indevido da ciência, que deve sempre promover o bem de todos.
Um segundo risco alertado pelo papa envolve as questões éticas relativas ao valor do ser humano. Como exemplo mais dramático temos as células tronco embrionárias e a eugenética, que é a manipulação genética do ser humano para criar pessoas “perfeitas”. Em seus discursos o papa tem lembrado que cada ser humano é uma criação única e que não faz sentido valorizar as pessoas só por meia dúzia de características (como beleza, força, inteligência) pois somos muito mais complexos que isso. A manipulação da vida humana em laboratório precisa respeitar as dignidade de cada ser humano e este é um limite claro para a Ciência. Definitivamente ela não é onipotente!
O terceiro risco que corremos com o desenvolvimento errado da Ciência é um risco moral. Frente ao sucesso das técnicas científicas muitos tendem a tornar absoluto o poder da Ciência crendo inclusive que ela é capaz de dar respostas às indagações humanas sobre o sentido da nossa existência. Estas visões são bem representadas hoje pelo cientificismo e pelo declínio moral de nossa época. O papa sempre alerta para falsidade do cientificismo, seu fracasso como princípio norteador da moral e o perigo de levar à intolerância religiosa.
Para encerrar quero dizer que vejo horizontes muito promissores para as relações entre a Ciência e a Igreja. Certamente há muitos pontos que podem ser delicados, como os três que citei acima, mas penso que a medida que a humanidade for conhecendo mais a Ciência, vai entender melhor seus limites e ver como, através da história, a Igreja sempre colaborou para o desenvolvimento científico. Sem que no entanto isto seja uma meta sua pois, como dizia o padre Lemaître, “à Igreja bastam a cruz e o evangelho”.

Fonte: Alexandre Zabot

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